Guerra
do Contestado
*
Tatiana Beltrão
Adeodato Ramos havia passado boa parte do
gelado inverno catarinense de 1916 embrenhado na mata, fugindo de seus
perseguidores. Depois de uma noite de geada, o último líder rebelde da Guerra
do Contestado estava exausto. Ao sair da mata e sentar-se à beira da estrada
para se aquecer ao sol, foi flagrado por uma patrulha. O “temido facínora”, o
“sanguinário chefe dos fanáticos”, o “flagelo de Deus”, como o descreviam os
jornais da época, entregou-se sem nem sequer esboçar resistência.
A captura dele, na virada de julho para
agosto, marcaria o fim da guerra, que se arrastou por quatro anos e transformou
a região do Contestado (área disputada por Santa Catarina e Paraná) no palco da
revolta mais sangrenta do século 20 no Brasil.
Os rebeldes chegaram a se espalhar por uma
área equivalente ao tamanho de Alagoas. Entre 1912 e 1916, eles enfrentaram as
forças policiais e militares dos dois estados e do Exército. Os insurgentes
eram movidos por motivos que iam do messianismo à luta pela terra. Eram contra
o poder público e os coronéis locais. Reagiam ao impacto da construção de uma
estrada de ferro, que os expulsou da terra onde viviam.
Estima-se que pelo menos 10 mil pessoas
pereceram na região do Contestado, tanto nos combates quanto de fome e de
doenças como o tifo, que se alastrou pelas “cidades santas” erguidas pelos
revoltosos. Entre os mortos, milhares de mulheres e crianças.
A guerra mobilizou metade do efetivo do
Exército: mais de 7 mil soldados, nos momentos de luta mais intensa.
Messianismo
A
indefinição dos limites territoriais entre Santa Catarina e Paraná vinha desde
o Império, e até a Argentina pleiteava a posse de áreas dos dois estados. O
Supremo Tribunal Federal deu ganho de causa aos catarinenses em 1904 e reafirmou
sua decisão nos anos seguintes, mas a sentença era ignorada pelo governo
paranaense. Nesse cenário de conflito, a revolta prosperou.
A
guerra começou pequena, com um grupo reduzido de sertanejos (moradores desses
campos do Sul, chamados de sertão na época) que em 1912 reuniu-se em torno de
um curandeiro. José Maria seguia a tradição de outros dois curandeiros que
haviam passado por lá anos antes e eram considerados “monges” pelos sertanejos.
Ele também fazia profecias: anunciava uma monarquia celestial em que todos
viveriam em comunhão, dividindo bens.
Dos
seguidores do novo monge, muitos eram posseiros, sitiantes e pequenos
lavradores que haviam sido expulsos das terras em que viviam pelo grupo
americano responsável pela construção da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande,
do megaempresário Percival Farquhar.
Além
da concessão, Farquhar ganhou do governo brasileiro as terras situadas às
margens da ferrovia, uma vasta faixa de 15 quilômetros de cada lado.
Depois
da construção da estrada de ferro, a região, coberta de matas de árvores nobres
como a araucária, começou a ser desmatada. O empresário ergueu lá a maior
madeireira da América do Sul na época e uma companhia colonizadora que, depois
do desmate, venderia as terras a imigrantes europeus. Famílias que viviam
no local foram expulsas por milícias armadas da empresa, com apoio das
autoridades brasileiras.
Primeira batalha
O
monge José Maria e os fiéis se instalaram em Taquaruçu, nos arredores de
Curitibanos (SC). Temendo que o grupo fosse usado por inimigos políticos, um
poderoso coronel da cidade pediu ao governo catarinense tropas para dispersar
um “ajuntamento de fanáticos” que supostamente queria proclamar a Monarquia no
Sul do Brasil.
Ao
saber que a força policial havia sido chamada, os fiéis fugiram para Irani
(SC), localidade que na época estava na área do Contestado.
A
chegada do grupo foi vista pelo Paraná como uma investida de Santa Catarina
para forçar a posse do território contestado. Em resposta, o Paraná enviou um
destacamento policial para expulsar os supostos invasores. Em outubro de 1912,
a ação terminou de forma trágica, com 21 mortos. Entre eles, o monge José Maria
e o comandante das forças de segurança do Paraná, coronel João Gualberto.
Documentos
históricos guardados no Arquivo do Senado mostram a reação dos senadores ao
conflito. Dois dias depois da batalha, a morte do comandante foi anunciada no
Plenário do Senado, sediado no Palácio Conde dos Arcos, no Rio.
O
senador paranaense Generoso Marques falou aos colegas sobre a “horda de
bandidos e fanáticos” que havia invadido o Paraná e leu um telegrama enviado
pelo governador do Paraná, Carlos Cavalcanti, ao Congresso. O governador
comunicava que o estado havia pedido ao presidente da República, Hermes da
Fonseca, a intervenção de forças federais.
O
senador catarinense Abdon Batista apoiou o colega:
— Esse
acontecimento, ao mesmo tempo em que nos cobre de pesado luto, nos anima e nos
incita na obrigação de secundar as forças do estado vizinho para que, de uma
vez, sejam extirpados os elementos maus que procuram perturbar nossa vida de
trabalho e progresso.
Ao
longo do conflito, os dois estados trocariam acusações de incentivar os
revoltosos e até de fornecer-lhes armas.
Exército encantado
Depois da morte do monge, os devotos se
dispersaram. O messianismo, porém, permaneceu. No ano seguinte, difundiu-se a
crença de que José Maria voltaria do céu, acompanhado do “Exército Encantado de
São Sebastião”. Uma criança de 11 anos dizia ver o monge em sonhos pedindo aos
fiéis que se preparassem para uma guerra santa. O grupo rebelde voltou a se
reunir em Taquaruçu.
Agora não eram apenas os antigos
seguidores do monge José Maria que se prepararam para a luta. Somaram-se a eles
descontentes em geral: mais colonos expulsos, fazendeiros que se opunham aos
coronéis, tropeiros sem trabalho, desempregados da obra da ferrovia e até
ex-combatentes da Revolução Federalista (1893–1895), que tinham experiência com
armas e contestavam a República.
— Num determinado momento, torna-se uma
guerra de pobres contra ricos — diz o historiador Paulo Pinheiro Machado, autor
do livro Lideranças do Contestado. — Uma guerra daqueles que queriam formar
suas comunidades autônomas, onde todos viveriam em comunhão de bens, o que era
uma negação da própria ordem republicana, da concentração fundiária, do poder
dos coronéis da Guarda Nacional e da força da polícia, do Exército e da
companhia norte-americana ferroviária sobre eles.
Machado contesta a visão de que o
fanatismo religioso de sertanejos pobres e ignorantes foi o principal
combustível da revolta. O pesquisador sustenta que, paralelamente à crença na
guerra santa, os rebelados haviam desenvolvido uma nítida consciência de sua
marginalização social e política e de que “lutavam contra o governo, que
defendia os interesses dos endinheirados, dos coronéis e dos estrangeiros”.
“Novo
Canudos”
Na época, porém, a visão predominante na
imprensa, refletida no Congresso Nacional, ignorava os problemas que motivaram
a insurreição sertaneja. Em setembro de 1914, o senador Abdon Batista desqualificou
no Plenário denúncias do deputado federal Maurício de Lacerda, do Rio de
Janeiro, que afirmava que a usurpação de terras era a principal causa do
conflito:
— É uma lenda. Essa gente não tem terras
nessas zonas, o que querem é viver sem trabalhar.
Uma das poucas vozes dissonantes no
Congresso, Lacerda disse à imprensa que o Contestado era “um novo Canudos” e
defendia os revoltosos, “brasileiros donos de suas terras e que foram usurpados
por uma empresa estrangeira”.
— As vítimas, como era natural,
defenderam-se. O que se devia esperar? Que o Estado fosse em socorro daqueles
homens, mas verificou-se o contrário — declarou aos jornalistas.
O deputado denunciava que dois influentes
políticos paranaenses, “protetores da empresa estrangeira que havia se
apoderado à força das terras dos sertanejos”, conseguiram que o governo
mandasse forças para “defender os ladrões e matar brasileiros que licitamente
defendiam suas propriedades”.
Esses políticos eram o senador Alencar
Guimarães (que havia governado o Paraná) e o vice-governador Affonso Camargo.
Guimarães defendeu-se no Plenário do
Senado.
— Nunca fui homem de negócios, jamais
advoguei interesses de qualquer companhia nacional ou estrangeira que
colidissem com interesse do Estado.
“Pavor
e pena"
Expedições militares tentaram desmobilizar
o movimento, atacando Taquaruçu. Depois de várias tentativas, o reduto foi
destruído em fevereiro de 1914. A força militar bombardeou a comunidade de
longe. Atingiu principalmente mulheres, crianças e idosos, pois a maior parte
dos homens havia partido para formar outro reduto, o de Caraguatá.
Foi um massacre. Metralhadoras, canhões e
até granadas foram usados no ataque. No livro A Campanha do Contestado, o
militar Demerval Peixoto, que participou dos combates como soldado, reproduz o
relatório do médico que acompanhou a expedição:
“Pernas, braços, cabeças, casas
queimadas... Fazia pavor e pena o espetáculo que se desenhava aos olhos. Pavor
motivado pelos destroços humanos; pena das mulheres e crianças que jaziam
inertes por todos os cantos”.
A revolta da população contra o massacre
só fez fortalecer o movimento, e os sertanejos começaram a expandir suas ações.
Milhares de novos adeptos se mudavam para os redutos. Novas “cidades santas”
surgiam. A maior delas, Santa Maria (que não tem relação com o município gaúcho
homônimo), tinha 25 mil pessoas.
Ao mesmo tempo, o movimento se
militarizou, com líderes “de briga” aliados aos religiosos. No inverno de 1914,
os sertanejos começaram a saquear fazendas, roubando gado e comida e arregimentando
pessoal (até sob ameaça) para reforçar os redutos. Passaram a atacar e ocupar
cidades. Nos ataques, estações de trem e repartições públicas eram queimadas.
Com apoio dos governadores de Santa
Catarina e Paraná, em 1914 o governo federal decidiu empreender uma grande
operação militar para aniquilar a insurreição. Sob o comando do general
Setembrino de Carvalho, 6 mil soldados rumaram para o sul do país. Além deles,
2 mil civis (chamados vaqueanos), a maioria integrantes das guardas privadas armadas
mantidas pelos coronéis da região, foram contratados para auxiliar o Exército.
A ordem do governo era clara: “acabar com os fanáticos”, como contou o próprio
general Setembrino em suas memórias.
Quando o cerco aos redutos se apertou,
começou a faltar comida, remédios e munição para os rebeldes. Sobreviventes
relataram que, no final, comeram até couro de cintos e arreios para não morrer
de fome. Para evitar deserções, alguns líderes, como Adeodato, impuseram um
regime de terror nos redutos, executando os suspeitos de traição.
O reduto de Santa Maria foi destruído na
Páscoa de 1915. Em telegrama a Setembrino, o capitão responsável pelo ataque
detalha: “Tomei e arrasei 13 redutos com enormes sacrifícios do meu heroico
destacamento. Matamos em combate perto de 600 jagunços, não contando o grande
número de feridos. Arrasei perto de 5 mil casas e 10 igrejas”.
Os últimos combates ocorreram em dezembro
de 1915, e os rebelados, derrotados, se dispersaram. Houve rendições em massa
das famílias sertanejas.
Os vaqueanos começaram então uma caçada
aos últimos líderes rebeldes. Muitos deles foram mortos em execuções sumárias,
mesmo depois de rendidos. Alguns vaqueanos ganharam fama por retirar sertanejos
da cadeia para executá-los.
Acordo
de limites
Com a captura de Adeodato Ramos, o último
e mais temido líder dos rebelados, a guerra foi encerrada de vez, naquele
inverno de 1916. Logo em seguida, em outubro, finalmente veio a assinatura do
acordo de limites entre Santa Catarina e Paraná. Pressionados pelo presidente Wenceslau
Braz, cada um dos dois estados teve que ceder um pouco. A partilha, porém, foi
vista como favorável aos catarinenses, que ficaram com 28 mil dos 48 mil
quilômetros quadrados da área contestada.
Na assinatura do acordo, no Palácio do
Catete, no Rio, o governador de Santa Catarina, Felipe Schmidt, comemorou a
paz, encerrando um “passado amargo” que fazia os dois estados se olharem com
desconfiança, como “dois povos estranhos que aguardassem, de arma em punho, a
hora da peleja”.
O governador do Paraná, Affonso Camargo,
também exaltou a paz, mas deixou claro o ressentimento com um desfecho que
considerava injusto. Ele justificou sua decisão de assinar o acordo mesmo assim
citando a necessidade urgente de encerrar uma “luta fratricida sem
precedentes”:
— Ali caíram sem vida oficiais do
Exército, bravos soldados das forças nacionais e estaduais e milhares de
sertanejos, na sua maioria laboriosos, em uma confusão desumana que
dolorosamente impressionou todo o país.
Ao citar os sertanejos “em sua maioria
laboriosos”, o governador reconhecia que o movimento, hoje visto como
uma das maiores revoltas camponesas do Brasil, era mais que uma combinação de
fanatismo e banditismo.
Essa consciência se ampliaria a partir dos
anos 1970, explica o historiador Paulo Pinheiro Machado. Com a redemocratização
do país, criou-se um ambiente favorável para a retomada da memória e dos
estudos sobre a Guerra do Contestado.
No Senado, essa releitura histórica ficou
patente numa sessão especial realizada em agosto de 2009 para lembrar a guerra.
No Plenário, os senadores ressaltaram o caráter de revolta social do movimento,
as injustiças cometidas contra a população pobre do Contestado e a ausência do
Estado.
“Quando o Estado falta, não cumpre com seu
dever, se omite, o resultado é este: as pessoas reagem”, disse o senador
Raimundo Colombo, hoje governador de Santa Catarina.
O então senador Flavio Arns, do Paraná,
afirmou que o governo desconsiderou uma população pobre para privilegiar
empresários e fazendeiros.
Na época da guerra, uma rara visão lúcida
do conflito veio justamente de um comandante do Exército, o jovem capitão
Mattos Costa. Idealista, ele defendia uma solução pacífica e morreu em combate,
em 1914. Ficou registrada em relatos militares sua concepção da guerra:
“A revolta do Contestado é apenas uma
insurreição de sertanejos espoliados nas suas terras, nos seus direitos e na
sua segurança. A questão do Contestado se desfaz com um pouco de instrução e o
suficiente de justiça, como um duplo produto que ela é da violência que revolta
e da ignorância que não sabe outro meio de defender o seu direito”.
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