Pintura retratando Canudos antes da guerra
120 anos do fim da Guerra de Canudos: uma
ferida em aberto no Brasil
Para
historiador, contato com essa história é fundamental para a construção da
identidade
Caio
Clímaco*
No mês
outubro de 2017 completaram-se 120 anos do fim da Guerra de Canudos. O massacre
começou no dia 7 de novembro de 1896, quando a primeira expedição do Exército
brasileiro foi destacada para combater os “conselheiristas” (nome dado aos
seguidores de Antônio Conselheiro). No dia 5 de outubro de 1897, após 11 meses
de intenso combate no sertão baiano, a guerra teve seu fim, levando à morte
cerca de 20 mil conselheiristas e 5 mil soldados, além da destruição completa
do arraial.
A guerra
contra Canudos teve como saldo final a destruição total do arraial, o incêndio
de todas as casas, o extermínio de prisioneiros civis, o abuso sexual, a
prostituição e a degola de mulheres e crianças, deixando até os dias de hoje
uma ferida em aberto no sertão brasileiro. O Exército havia cumprido, portanto,
com o objetivo proposto pelo então presidente, Prudente de Morais, que chegou a
fazer a seguinte declaração: "Em Canudos não ficará pedra sobre pedra,
para que não mais possa se reproduzir aquela cidadela maldita".
Segundo o
descendente de conselheiristas, historiador e monitor de turismo do Parque
Estadual de Canudos, João Batista, a violência da guerra permaneceu durante
bastante tempo no imaginário coletivo dos moradores da região. No início do
século XX os professores temiam em falar de Canudos para as crianças na escola.
Segundo João Batista, o assunto deixou traumas profundos na população local:
“Temiam quando se ouvia alguma comemoração em que havia queima de fogos, as
pessoas corriam pra suas casas ou fugiam para caatinga com medo de que fosse
algum tiroteio ou alguma nova tentativa de se destruir Canudos”.
A segunda
grande ingerência do Estado brasileiro sobre Canudos se deu após a guerra, no
período da Ditadura Militar, quando a construção criminosa do açude do Cocorobó
acarretou no alagamento intencional da região, na tentativa de abafar a
crueldade, a vergonha e o fracasso das expedições do Exército. O alagamento criminoso
se insere no rol de iniciativas que historicamente cumprem o papel de retirar
do povo brasileiro o seu direito à história, à memória e à Justiça. O governo
dos militares prometeu abastecer 20 municípios da região através da construção
do açude, mas o fato é que a obra sequer cumpriu com a demanda de abastecimento
da própria Canudos.
Quem foi Conselheiro
Antônio
Vicente Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro, nasceu no ano de 1830 em
Quixeramobim, no sertão do Ceará. Ao longo de sua história, foi ridicularizado
pela imprensa republicana, sendo chamado de farsante, fanático, desvairado e
inconsequente. Descendente de uma família de vaqueiros e pequenos proprietários
de terra, foi desde jovem incentivado por seu pai, Vicente Mendes Maciel, a
seguir a carreira sacerdotal. Teve o privilégio de aprender a ler e a escrever,
numa época em que o acesso à educação era ainda mais elitizado que nos dias de
hoje. Aprendeu também o latim, trabalhou como comerciante, professor, caixeiro
e escrivão de paz.
Antônio
Conselheiro encontrou na religiosidade o guia para a sua ação prática. Recebeu
influências do Padre Ibiapina – que também inspirou o Padre Cícero através de
suas missões evangelizadoras –, vinculando-se ao “catolicismo popular”,
corrente que mescla crenças cristãs vindas da Europa e práticas indígenas e
africanas. Como não se submete à hierarquia eclesiástica, é vista pelos setores
conservadores da Igreja Católica como uma ameaça aos dogmas.
Conselheiro
chegou a ser torturado, preso e acusado injustamente de ter matado a própria
mãe e a esposa. No entanto, o que ocorreu foi a criação de um fato político por
parte de setores da Igreja que eram contrários às suas pregações. Teve sua
inocência comprovada, foi libertado e voltou para o sertão, dando continuidade
as suas peregrinações. Após peregrinar incansavelmente por quase 20 anos pelo
sertão nordestino, mobilizando o povo humilde e construindo igrejas e açudes,
Conselheiro estabeleceu-se em Canudos em 1893, fundando, juntamente com seus
seguidores, o povoado de Belo Monte.
Para
Batista, os ideais e o trabalho realizado junto ao povo fez de Antônio
Conselheiro um líder revolucionário do século XIX: “Antônio Conselheiro é um
grande revolucionário porque em meio a toda a conjuntura social, política e
econômica ele traz uma mensagem de libertação para o povo. Enquanto o povo
estava sendo cativo, tentando viver uma liberdade que foi dada entre aspas pela
Princesa Isabel, Conselheiro buscou uma liberdade real, convincente e em que
todos eram livres dentro do movimento de Canudos. Ao sair pregando pelo sertão
uma mensagem de libertação contra a República, no qual se pregava um regime a
favor dos coronéis e latifundiários, dos barões, ele estava lutando contra a
correnteza, a favor dos pequenos, dos que estavam padecendo de fome, dos que
estavam padecendo de sede. Conselheiro dá a eles essa esperança. Enquanto os
padres daquela época pregavam de costas e em latim para o povo, Conselheiro
pregava em meio ao povo, de forma clara, objetiva e numa linguagem que o povo
do sertão conhecia e a partir daí a fé movia todo o povo.”
A formação de Belo Monte (Canudos)
No ano de
1893, Antônio Conselheiro e seus seguidores estabeleceram-se às margens do rio
Vaza Barris, dando início à construção do povoado denominado por Conselheiro de
Belo Monte, na região de Canudos. O nome “Canudos” advém, segundo Batista, de
uma planta típica da região, o Canudeiro de Pito, comumente utilizada para
fabricação de cachimbos.
Na virada
do século XIX para o século XX, o sertão brasileiro vivia uma de suas mais
profundas crises: miséria, fome, seca e superexploração. Os moradores que
ergueram o povoado de Belo Monte eram de diferentes matizes: povos indígenas
(entre eles os valentes Kiriris), escravos libertos, sem-terra, pequenos
lavradores, ex-prostitutas e ex-cangaceiros.
Considerados
pela imprensa como “fanáticos”, os moradores de Belo Monte eram um povo sem
posses que recusaram a exploração senhorial e buscavam uma terra para seu
sustento.
Interesses que motivaram a guerra
Três
elementos são fundamentais para compreensão do massacre perpetrado contra o
povoado de Canudos:
A ida dos
sertanejos e de escravos libertos para o arraial acabou gerando escassez de
mão-de-obra barata na região, atingindo diretamente os interesses dos
fazendeiros donos de terras e gerando grande descontentamento por parte deste
setor da sociedade.
A Igreja
Católica passava por um processo de fortalecimento de sua estrutura
hierárquica, em que apenas o representante oficial do Vaticano podia falar
sobre as mensagens de Jesus Cristo. O questionamento de lideranças religiosas
“leigas” foi intenso, na tentativa de deslegitimar aqueles que iam contra a
corrente majoritária do Catolicismo da época.
A
recém-proclamada República do Brasil (1889) encontrava-se em crise econômica e
passava por uma instabilidade política, sendo que a guerra aberta contra
Canudos serviria para aglutinar e buscar a unidade e o apelo popular em torno
do regime republicano.
Canudos hoje
Após ser
destruída por duas vezes, a cidade foi reconstruída e atualmente está
localizada a 13 quilômetros do antigo arraial, área onde atualmente se encontra
o Parque Estadual de Canudos, inaugurado no centenário da guerra em 1997. O
massacre de Canudos não teve reparação e as condições atuais de vida do povo
canudense são bastante difíceis diante da falta de emprego, da carência de
investimentos e programas sociais que possibilitem a superação da pobreza na
região.
Atualmente
a economia da cidade se desenvolve, principalmente, através do comércio e da
produção de banana, sendo que a grande parte da população sobrevive através da
prestação de serviços e da aposentadoria. A infraestrutura do município é
bastante precarizada, demonstrando que o descaso com o povo e com a história do
local continuam vigentes ainda nos dias de hoje. Para se ter uma ideia, a
agência do Banco do Brasil do município não disponibiliza o serviço de saque
nos caixas eletrônicos devido aos vários assaltos ocorridos no local. Além disso,
a cidade não possui sequer um terminal rodoviário, e o embarque e desembarque
de passageiros se dá em meio às ruas esburacadas e sem pavimentação.
Para além
do descaso dos poderes públicos com a infraestrutura local e com as condições
de vida do povo canudense, a história de Canudos também é algo que não é
valorizado pelos organismos públicos. O motoboy João Camilo, 35 anos, afirma
que os visitantes conhecem mais sobre a história de Canudos do que a própria
população local, pois segundo ele, não há por parte das instituições públicas
um esforço suficiente para resgatar essa importante história de luta e de
resistência.
Para
Batista, o contato com a história de Canudos é fundamental para compreensão e
para a construção da identidade: “O sentimento de pertencimento deve acontecer
continuamente porque vem surgindo novas gerações e é preciso construir a ideia
de que é necessário lutar pela memória da guerra e da história de Canudos. Não
da guerra de Canudos em si, mas a memória, pois somos descentes desse povo.
Cerca de 60% das pessoas que vivem em Canudos são descendentes do povo que
lutou na guerra, por isso é preciso trabalhar bastante a nossa identidade.”
Segundo
Batista é necessário também narrar a história de Canudos pelas lentes dos
remanescentes do local, pois muita das vezes a história que se conta sobre o
lugar carrega uma perspectiva preconceituosa e conservadora, distante dos
valores praticados no arraial: “A guerra de Canudos não foi uma guerra de
Canudos, foi uma guerra contra Canudos. O povo de Canudos não procurou guerra,
estava defendendo seu lado, defendendo sua história, seus sonhos, seus ideais
que foram construídos a partir da partilha, da comunhão, da fé e da pregação de
Antônio Conselheiro”.
Diante da
complicada situação em que o povo canudense se encontra, Batista é categórico
ao responder sobre o que deveria ser feito por parte do governo brasileiro para
se buscar uma reparação: “Para reparar tudo que foi feito no palco de guerra
com os filhos e filhas de Canudos não tem preço, mas investir em políticas
públicas e educação seria uma tentativa, um início, para poder reparar um pouco
isso. É o que nosso país clama: educação, por tudo que é canto. É necessário
inserir Canudos no contexto da história para que as pessoas saibam o que foi
realmente o movimento e a partir de uma linguagem que não diga que somos os
matutos, mas sim homens e mulheres de fibra que lutaram por seus ideais, que
tentaram viver uma vida mais digna longe das intervenções do governo, mas com
dignidade, fé, luta e resistência no sertão, pois intervenções positivas por
parte do Estado não ocorreram de forma alguma por aqui.”
*Caio Clímaco é cientista social do Estado e
militante da Consulta Popular.
2 Comentários
linda e triste história, como gostria de conhecer este local,não por relembrar momentos tão genocida, mais por seus descendentes que ainda existem lá.UM LUGAR DE RESISTENCIA!!!
ResponderExcluirObrigado pela visita Graciana!
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