ESCRAVIDÃO NO BRASIL - DOS GRILHÕES AO QUILOMBO
Novos estudos sobre o escravismo têm
procurado mostrar que os escravos não eram simples ‘coisas’ (apesar de serem
uma mercadoria valiosa), mas pessoas que não perderam sua condição de sujeitos na
dinâmica da sociedade colonial. É praticamente impossível determinar a
quantidade de escravos negros gradativamente introduzidos na colônia para
substituir a mão-de-obra indígena. Com certeza, milhões.
Em todas as regiões do Brasil, da Amazônia
ao Rio Grande do Sul, eram encontrados escravos negros: nas plantações de
açúcar, fumo, algodão e café, prestando os mais diversos serviços domésticos
nas residências, ou mesmo trabalhando no espaço urbano como os conhecidos
‘negros de ganho’. Estavam presentes também nos garimpos de ouro e diamantes na
região de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás.
É impossível pensar a história do Brasil
colonial sem considerar a importância dos escravos – não apenas enquanto
mão-de-obra, ou nas contribuições étnicas para a cultura brasileira, mas
fundamentalmente enquanto ser humano.
A sociedade colonial é eminentemente
escravista e todas as relações socioculturais são permeadas por essa
característica. No entanto, não podemos deixar de considerar, que mesmo
escravizados, esses homens nem por isso perdiam sua interioridade.
Ser
escravo
Ser escravo no Brasil pressupunha uma
trajetória individual que vale a pena abordar com os alunos. A vida de escravo
quase sempre começava na África, com a captura, e continuava no transporte no
navio negreiro, em condições marcadas pela violência e pela brutalidade.
O escravo era arrancado de suas relações
sociais; todos seus laços de socialização, com os familiares e o clã, eram
desfeitos.
No Brasil, os africanos ficavam isolados,
em um mundo cuja língua não entendiam e com poucas chances de estabelecer, de
imediato, redes de solidariedade com os demais escravos – por motivo de
segurança, os senhores tinham como prática impedir a convivência de escravos da
mesma etnia.
Na situação de venda, nos mercados, eram
tratados de fato como mercadoria. A condição mercantil os colocava diante da
permanente possibilidade de venda no tráfico interno: nunca sabiam se o lugar
para onde os destinavam seria permanente, ou se seriam novamente vendidos. Isto
também dificultava o estabelecimento de relações entre os próprios negros.
Aos escravos, portanto, não se
apresentavam muitas escolhas. Seu ajustamento ao novo ambiente dependia da
forma como respondesse às exigências das normas ditadas por seu amo e senhor, e
sua inserção na sociedade dependia de um mínimo de aceitação, ou adaptação, à
nova condição.
Segundo Kátia Mattoso (1982), a sociedade
branca esperava desse homem escravizado fidelidade, obediência e humildade:
“Essas três qualidades especiais conformam a personalidade do bom escravo”. A
aparente aceitação dessas normas não significava que não houvesse resistências
ou conflitos internos. No entanto, mesmo em meio ao horror que vivenciavam,
eles precisavam tentar sobreviver. Os que não se adaptavam a essas exigências e
não conseguiam se estruturar internamente na condição escrava provavelmente
morriam.
Pode-se imaginar o tamanho do desespero,
da depressão e da insegurança que acometiam muitos escravos, levando-os
inclusive à morte pelo tão conhecido ‘banzo’. Isso sem falar no suicídio, no infanticídio
e nos abortos.
Os que sobreviviam precisavam se adaptar
às duras condições de trabalho, às longas jornadas, à alimentação precária, aos
maus tratos e castigos. Essas eram as condições objetivas em que viviam. Com
elas, e com as limitações subjetivas enumeradas anteriormente, o escravo
buscava, ou não, meios de se adaptar a esse novo mundo. As regras básicas de
sobrevivência implicavam trabalhar e obedecer. Não necessariamente sem
resistência.
Uma história da resistência
escrava
Apesar de ser um lugar-comum, nunca é
demais repetir: onde houve escravidão, houve resistência, como comentam Reis
& Gomes (1996):
Mesmo sob a ameaça do chicote, o escravo
negociava espaços de autonomia com os senhores ou fazia corpo mole no trabalho,
quebrava ferramentas, incendiava plantações, agredia senhores e feitores,
rebelava-se individual e coletivamente.
Essas formas de resistência não ficavam
impunes. Os castigos infligidos aos escravos chegavam a requintes de crueldade.
Podiam ser acorrentados, postos nos troncos e chicoteados, ou até mesmo sofrer
mutilações e a imposição de marcas de ferro em brasa.
O medo não era exclusividade do negro
escravizado. Ao contrário, estava presente em todas as camadas da sociedade
colonial. Os senhores, por sua vez, temiam possíveis agressões físicas – é
importante lembrar os assassinatos de feitores e senhores –, e também tremiam
diante das forças misteriosas que acreditavam ser dominadas pelos negros.
Eram muito comuns as acusações a escravos
por envenenamento com ervas que eles conheciam, e que eram capazes de provocar
a morte. Os senhores receavam sobretudo os feitiços, a magia e os maus-olhados,
temendo que a força desses encantamentos provocasse doenças ou a morte, tal
qual os venenos.
As formas de resistência eram, portanto,
muitas e variadas. A fuga aparece como uma das mais típicas e, de acordo com
muitos historiadores, inerente à escravidão. A fuga tanto podia ser individual
como coletiva. As cidades apareciam como um dos possíveis refúgios, pois nelas
os escravos podiam passar despercebidos, misturando-se aos libertos. Em outros casos
fugiam para a mata e formavam as comunidades que ficaram conhecidas como
quilombos.
Quilombo,
palavra de origem banto, designava as povoações construídas nas matas pelos
negros fugidos. Essas comunidades também eram conhecidas como mocambos,
palavra do quimbundo que significa ‘esconderijo’.
Quilombos
e quilombolas
Os quilombos marcaram presença em todos os
lugares da América em que houve escravidão, com grande diversidade de características
em termos de proporção, duração e até mesmo da composição étnica de seus
habitantes. Há notícias de quilombos por todo o Nordeste açucareiro, sendo que
o mais conhecido foi o de Palmares. Mas também foram encontrados na região das
Minas Gerais, em Mato Grosso, no Grão-Pará e até mesmo no Rio Grande do Sul.
O que representaram os quilombos? Podemos classificá-los
como uma reação ao sistema escravista? Entendê-los como uma tentativa de
reconstruir o modo de vida africano? Ou simplesmente como uma forma de protesto
contra as condições impostas?
Segundo Kátia Mattoso (1982), os quilombos
são tudo isso ao mesmo tempo. No entanto, não eram fruto de um plano
premeditado, que visasse contestar a sociedade colonial. Surgiam
espontaneamente, em geral em áreas de difícil acesso, longe de cidades,
estradas e plantações. Mas isso não significa que os quilombolas vivessem isolados,
sem contato com o restante da sociedade.
A população dos quilombos era
diversificada, sendo que muitos abrigavam índios, mulatos e brancos livres, ou
negros forros. Para ali se dirigiam aqueles que não encontravam na sociedade
colonial um espaço no qual transitar com certo grau de liberdade: desde
criminosos até os que buscavam o quilombo por falta de ocupação profissional.
Uma volta à Mãe África?
Muito se tem
escrito sobre os quilombos, como se sua organização fosse a recriação do mundo
africano. Estudiosos como Edson Carneiro e Arthur Ramos entendiam o quilombo
como uma resistência à aculturação europeia a que os escravos eram submetidos.
Nesse sentido, viam o quilombo de Palmares quase como um verdadeiro Estado
africano, no qual se tentaria recriar uma espécie de sociedade alternativa, isolada,
em que todos seriam livres e possivelmente iguais, tal como teriam sido em uma
África em tudo idealizada. Mas essa representação da África como uma unidade
não passa de romantismo.
Atualmente os estudiosos se empenham em
entender a complexa rede estabelecida entre os quilombolas e os diversos grupos
da sociedade com quem os fugitivos mantinham relações. Acima de tudo, é
importante discutir a ideia de que os quilombolas vivessem isolados em uma
‘pequena África’.
O próprio continente africano dificilmente
pode ser visto como um todo homogêneo, pois é constituído por um grande número
de etnias, com costumes em tudo diversos, da língua à religião, passando pela
organização social e política. O mesmo pode ser dito dos quilombos.
A língua falada nos quilombos
provavelmente utilizava a estrutura do português, misturada com formas africanas
e indígenas – haveria uma espécie de sincretismo linguístico. Em relação à
religião, sabe-se que em Palmares conviviam diversos cultos, do católico aos
das mais variadas crenças africanas, além de elementos da religiosidade
indígena.
A população não se resumia a negros
africanos. A presença de índios nos quilombos era significativa, e em muitos
casos eles transmitiram aos negros os conhecimentos necessários para a
subsistência na mata. Os africanos que viviam nos quilombos, por sua vez,
procediam de diversas etnias. Nesse sentido, no quilombo conviviam costumes
africanos de etnias variadas, obrigadas a se relacionar mutuamente no novo
mundo.
As observações de Reis & Gomes (1996)
se contrapõem à visão idealizada do quilombo como uma volta à África, pois para
esses autores “seria mais frutífero investigar como os quilombolas continuavam
em seus refúgios, com ritmos e meios diferentes, a formação de uma sociedade afro-brasileira
que havia começado nas senzalas”.
A formação de quilombos perpassa toda a
história social do Brasil colonial, e a experiência neles forjada revela um pouco
da feição multiétnica da sociedade brasileira.
O
quilombo de Palmares
Palmares foi o mais emblemático dos
quilombos coloniais. Localizava-se na serra da Barriga, região hoje pertencente
ao estado de Alagoas; mas, à medida que sua população cresceu, foi se
expandindo pelas adjacências, formando diversos núcleos de povoamento. Os
maiores e mais conhecidos povoados distribuídos pelo extenso território foram
os do Macaco, centro político do quilombo, com aproximadamente 1.500 casas; o
de Subupira, que centralizava as atividades militares, com oitocentas cabanas;
o de Zumbi; e o de Tabocas, entre outros.
Não se pode afirmar com exatidão o número
de habitantes de Palmares, pois a população variava de acordo com as
circunstâncias do momento. Segundo estimativas de alguns historiadores, chegou
em 1670 a cerca de 20 mil habitantes.
Os moradores sobreviviam de caça, pesca,
coleta de frutas – como manga, jaca, laranja, abacate e outras –, além de
plantar feijão, milho, mandioca, banana e cana-de-açúcar. O setor artesanal era
desenvolvido: artífices dos mais variados ofícios produziam cestas, tecidos,
potes de argila, instrumentos musicais e outros objetos de uso cotidiano. Os
excedentes eram negociados com as populações vizinhas, em troca de artigos que
não podiam ser produzidos localmente. Isso demonstra que o quilombo não estava
isolado do restante da sociedade, vinculando-se a ela inclusive por laços
comerciais. Também no quilombo era fabricado todo o material bélico necessário
a sua defesa – facas, lanças, arcos, flechas etc.
Pouco se sabe a respeito da organização
política de Palmares. Seus chefes políticos seriam reis? Que poder exerceriam
sobre seus comandados? O sistema seria uma monarquia ou uma república?
Sabe-se que o sistema palmarino em nada se
assemelhava à república que se conhece hoje, e tampouco se parecia com as
monarquias europeias. Seria arriscado tentar enquadrar nesses modelos o que se
vivenciou naquela sociedade tão plural. É incontestável que havia uma forma
muito peculiar de organização, suficiente para resistir aos constantes ataques
empreendidos pelos governos para desbaratar o quilombo.
Foram necessárias cerca de dezoito
expedições, organizadas desde o período holandês, para derrotar definitivamente
o quilombo de Palmares. A última delas, comandada pelo experiente bandeirante
Domingos Jorge Velho, contou com um contingente aproximado de 6 mil homens, bem
armados e municiados, revelando o esforço das autoridades em conter a rebelião
escrava. Nesse sentido, Palmares também figura como paradigmático do medo que
os senhores tinham das fugas e rebeliões. Não seria exagero afirmar que, em alguns
momentos, Palmares colocou em pânico as autoridades metropolitanas, pois de
fato constituía uma ameaça ao funcionamento do sistema colonial.
A longa resistência ao poder colonial
originou verdadeiras contendas intelectuais e ideológicas. Contribuíram para a
mitificação de Palmares os fatos de agregar uma população de número
considerável para os padrões coloniais e impor resistência aos ataques oficiais
por quase um século, além do medo que inspirava nos senhores. Desde o movimento
abolicionista até os movimentos negros contemporâneos, Palmares foi objeto de
intensa discussão e investimento simbólico, transformando-se em um modelo
paradigmático da resistência negra contra a escravidão.
Sem dúvida, a história construída pelos
negros escravos brasileiros foi, sobretudo, a história da luta pela liberdade.
Mas nem por isso precisamos transformá-la em uma epopeia, ou em um mito, pois isto
distancia muito esses homens de nós mesmos. Conforme afirmaram Reis & Gomes
(1996):
Dizer que os quilombolas foram heróis é
pouco, pois diminui a riqueza de sua experiência. Que sejam celebrados como
heróis da liberdade […], mas celebremos […] a luta de homens e mulheres que
para viver a liberdade nem sempre puderam se comportar com as certezas e a coerência
normalmente atribuídas aos heróis.
Fonte: Domínio Público
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