HISTÓRIA
Todo conhecimento sobre o passado é também
um conhecimento do presente elaborado por distintos sujeitos. O historiador
indaga com vistas a identificar, analisar e compreender os significados de
diferentes objetos, lugares, circunstâncias, temporalidades, movimentos de pessoas,
coisas e saberes. As perguntas e as elaborações de hipóteses variadas fundam
não apenas os marcos de memória, mas também as diversas formas narrativas,
ambos expressão do tempo, do caráter social e da prática da produção do
conhecimento histórico.
As questões que nos levam a pensar a
História como um saber necessário para a formação das crianças e jovens na
escola são as originárias do tempo presente. O passado que deve impulsionar a dinâmica
do ensino-aprendizagem no Ensino Fundamental é aquele que dialoga com o tempo
atual.
A relação passado/presente não se processa
de forma automática, pois exige o conhecimento de referências teóricas capazes
de trazer inteligibilidade aos objetos históricos selecionados. Um objeto só se
torna documento quando apropriado por um narrador que a ele confere sentido,
tornando-o capaz de expressar a dinâmica da vida das sociedades. Portanto, o
que nos interessa no conhecimento histórico é perceber a forma como os
indivíduos construíram, com diferentes linguagens, suas narrações sobre o mundo
em que viveram e vivem, suas instituições e organizações sociais. Nesse
sentido, “O historiador não faz o documento falar: é o historiador quem fala e
a explicitação de seus critérios e procedimentos é fundamental para definir o
alcance de sua fala. Toda operação com documentos, portanto, é de natureza
retórica.”
A história não emerge como um dado ou um
acidente que tudo explica: ela é a correlação de forças, de enfrentamentos e da
batalha para a produção de sentidos e significados, que são constantemente reinterpretados
por diferentes grupos sociais e suas demandas – o que, consequentemente,
suscita outras questões e discussões.
O exercício do “fazer história”, de
indagar, é marcado, inicialmente, pela constituição de um sujeito. Em seguida,
amplia-se para o conhecimento de um “Outro”, às vezes semelhante, muitas vezes
diferente.
Depois, alarga-se ainda mais em direção a
outros povos, com seus usos e costumes específicos. Por fim, parte-se para o
mundo, sempre em movimento e transformação. Em meio a inúmeras combinações dessas
variáveis – do Eu, do Outro e do Nós –, inseridas em tempos e espaços
específicos, indivíduos produzem saberes que os tornam mais aptos para
enfrentar situações marcadas pelo conflito ou pela conciliação.
Entre os saberes produzidos, destaca-se a
capacidade de comunicação e diálogo, instrumento necessário para o respeito à pluralidade
cultural, social e política, bem como para o enfrentamento de circunstâncias
marcadas pela tensão e pelo conflito. A lógica da palavra, da argumentação, é
aquela que permite ao sujeito enfrentar os problemas e propor soluções com
vistas à superação das contradições políticas, econômicas e sociais do mundo em
que vivemos.
Para se pensar o ensino de História, é
fundamental considerar a utilização de diferentes fontes e tipos de documento
(escritos, iconográficos, materiais, imateriais) capazes de facilitar a
compreensão da relação tempo e espaço e das relações sociais que os geraram. Os
registros e vestígios das mais diversas naturezas (mobiliário, instrumentos de
trabalho, música etc.) deixados pelos indivíduos carregam em si mesmos a
experiência humana, as formas específicas de produção, consumo e circulação,
tanto de objetos quanto de saberes. Nessa dimensão, o objeto histórico
transforma-se em exercício, em laboratório da memória voltado para a produção
de um saber próprio da história.
A utilização de objetos materiais pode
auxiliar o professor e os alunos a colocar em questão o significado das coisas
do mundo, estimulando a produção do conhecimento histórico em âmbito escolar.
Por meio dessa prática, docentes e discentes poderão desempenhar o papel de
agentes do processo de ensino e aprendizagem, assumindo, ambos, uma “atitude
historiadora” diante dos conteúdos propostos, no âmbito de um processo adequado
ao Ensino Fundamental.
Os processos de identificação, comparação,
contextualização, interpretação e análise de um objeto
estimulam o pensamento.
De que material é feito o objeto em
questão? Como é produzido? Para que serve? Quem o consome? Seu significado se
alterou no tempo e no espaço? Como cada indivíduo descreve o mesmo objeto? Os
procedimentos de análise utilizados são sempre semelhantes ou não? Por quê?
Essas perguntas auxiliam a identificação
de uma questão ou objeto a ser estudado.
Diferentes formas de percepção e interação
com um mesmo objeto podem favorecer uma melhor compreensão da história, das
mudanças ocorridas no tempo, no espaço e, especialmente, nas relações sociais.
O pilão, por exemplo, serviu para preparar a comida e, posteriormente,
transformou-se em objeto de decoração. Que significados o pilão carrega? Que
sociedade o produziu? Quem o utilizava e o utiliza? Qual era a sua utilidade na
cozinha? Que novos significados lhe são atribuídos? Por quê?
A comparação
em história faz ver melhor o Outro. Se o tema for, por exemplo, pintura
corporal, a comparação entre pinturas de povos indígenas originários e de
populações urbanas pode ser bastante esclarecedora quanto ao funcionamento das
diferentes sociedades. Indagações sobre, por exemplo, as origens das tintas
utilizadas, os instrumentos para a realização da pintura e o tempo de duração
dos desenhos no corpo esclarecem sobre os deslocamentos necessários para a
obtenção de tinta, as classificações sociais sugeridas pelos desenhos ou,
ainda, a natureza da comunicação contida no desenho corporal. Por meio de uma
outra linguagem, por exemplo, a matemática, podemos comparar para ver melhor
semelhanças e diferenças, elaborando gráficos e tabelas, comparando quantidades
e proporções (mortalidade infantil, renda, postos de trabalho etc.) e, também,
analisando possíveis desvios das informações contidas nesses gráficos e
tabelas.
A contextualização
é uma tarefa imprescindível para o conhecimento histórico. Com base em níveis
variados de exigência, das operações mais simples às mais elaboradas, os alunos
devem ser instigados a aprender a contextualizar. Saber localizar momentos e
lugares específicos de um evento, de um discurso ou de um registro das
atividades humanas é tarefa fundamental para evitar atribuição de sentidos e
significados não condizentes com uma determinada época, grupo social,
comunidade ou território. Portanto, os estudantes devem identificar, em um contexto,
o momento em que uma circunstância histórica é analisada e as condições
específicas daquele momento, inserindo o evento em um quadro mais amplo de
referências sociais, culturais e econômicas.
Distinguir contextos e localizar
processos, sem deixar de lado o que é particular em uma dada circunstância, é
uma habilidade necessária e enriquecedora. Ela estimula a percepção de que
povos e sociedades, em tempos e espaços diferentes, não são tributários dos
mesmos valores e princípios da atualidade.
O exercício da interpretação – de um texto, de um objeto, de uma obra literária,
artística ou de um mito – é fundamental na formação do pensamento crítico.
Exige observação e conhecimento da estrutura do objeto e das suas relações com
modelos e formas (semelhantes ou diferentes) inseridas no tempo e no espaço.
Interpretações variadas sobre um mesmo objeto tornam mais clara, explícita, a
relação sujeito/objeto e, ao mesmo tempo, estimulam a identificação das
hipóteses levantadas e dos argumentos selecionados para a comprovação das
diferentes proposições. Um exemplo claro são as pinturas de El Greco. Para
alguns especialistas, tratam-se de obras que abandonam as exigências de nitidez
e harmonia típicas de uma gramática acadêmica renascentista com a qual o pintor
quis romper; para outros, tais características são resultado de estrabismo ou
astigmatismo do olho direito do pintor.
O exercício da interpretação também
permite compreender o significado histórico de uma cronologia e realizar o
exercício da composição de outras ordens cronológicas. Essa prática explicita a
dialética da inclusão e da exclusão e dá visibilidade ao seguinte
questionamento: “O que torna um determinado evento um marco histórico?” Entre
os debates que merecem ser enunciados, destacam-se as dicotomias entre Ocidente
e Oriente e os modelos baseados na sequência temporal de surgimento, auge e
declínio. Ambos pretendem dar conta de explicações para questões históricas complexas.
De um lado, a longa existência de tensões (sociais, culturais, religiosas,
políticas e econômicas) entre sociedades ocidentais e orientais; de outro, a
busca pela compreensão dos modos de organização das várias sociedades que se
sucederam ao longo da história.
A análise
é uma habilidade bastante complexa porque pressupõe problematizar a própria
escrita da história e considerar que, apesar do esforço de organização e de
busca de sentido, trata-se de uma atividade em que algo sempre escapa. Segundo
Hannah Arendt, trata-se de um saber lidar com o mundo, fruto de um processo
iniciado ao nascer e que só se completa com a morte. Nesse sentido, ele é
impossível de ser concluído e incapaz de produzir resultados finais, exigindo
do sujeito uma compreensão estética e, principalmente, ética do objeto em
questão.
Nesse contexto, um dos importantes
objetivos de História no Ensino Fundamental é estimular a autonomia de
pensamento e a capacidade de reconhecer que os indivíduos agem de acordo com a época
e o lugar nos quais vivem, de forma a preservar ou transformar seus hábitos e
condutas. A percepção de que existe uma grande diversidade de sujeitos e
histórias estimula o pensamento crítico, a autonomia e a formação para a
cidadania.
A busca de autonomia também exige
reconhecimento das bases da epistemologia da História, a saber: a natureza
compartilhada do sujeito e do objeto de conhecimento, o conceito de tempo
histórico em seus diferentes ritmos e durações, a concepção de documento como
suporte das relações sociais, as várias linguagens por meio das quais o ser
humano se apropria do mundo. Enfim, percepções capazes de responder aos
desafios da prática historiadora presente dentro e fora da sala de aula.
Todas essas considerações de ordem teórica
devem considerar a experiência dos alunos e professores, tendo em vista a
realidade social e o universo da comunidade escolar, bem como seus referenciais
históricos, sociais e culturais. Ao promover a diversidade de análises e
proposições, espera-se que os alunos construam as próprias interpretações, de
forma fundamentada e rigorosa. Convém destacar as temáticas voltadas para a
diversidade cultural e para as múltiplas configurações identitárias,
destacando-se as abordagens relacionadas à história dos povos indígenas originários
e africanos. Ressalta-se, também, na formação da sociedade brasileira, a
presença de diferentes povos e culturas, suas contradições sociais e culturais
e suas articulações com outros povos e sociedades.
A inclusão dos temas obrigatórios
definidos pela legislação vigente, tais como a história da África e das
culturas afro-brasileira e indígena, deve ultrapassar a dimensão puramente
retórica e permitir que se defenda o estudo dessas populações como artífices da
própria história do Brasil. A relevância da história desses grupos humanos
reside na possibilidade de os estudantes compreenderem o papel das alteridades
presentes na sociedade brasileira, comprometerem-se com elas e, ainda,
perceberem que existem outros referenciais de produção, circulação e
transmissão de conhecimentos, que podem se entrecruzar com aqueles considerados
consagrados nos espaços formais de produção de saber.
Problematizando a ideia de um “Outro”,
convém observar a presença de uma percepção estereotipada naturalizada de
diferença, ao se tratar de indígenas e africanos. Essa problemática está
associada à produção de uma história brasileira marcada pela imagem de nação constituída
nos moldes da colonização europeia.
Por todas as razões apresentadas,
espera-se que o conhecimento histórico seja tratado como uma forma de pensar,
entre várias; uma forma de indagar sobre as coisas do passado e do presente, de
construir explicações, desvendar significados, compor e decompor
interpretações, em movimento contínuo ao longo do tempo e do espaço. Enfim,
trata-se de transformar a história em ferramenta a serviço de um discernimento maior
sobre as experiências humanas e as sociedades em que se vive.
Retornando ao ambiente escolar, a BNCC
pretende estimular ações nas quais professores e alunos sejam sujeitos do
processo de ensino e aprendizagem. Nesse sentido, eles próprios devem assumir
uma atitude historiadora diante dos conteúdos propostos no âmbito do Ensino
Fundamental.
Cumpre destacar que os critérios de
organização das habilidades na BNCC (com a explicitação dos objetos de
conhecimento aos quais se relacionam e do agrupamento desses objetos em
unidades temáticas) expressam um arranjo possível (dentre outros). Portanto, os
agrupamentos propostos não devem ser tomados como modelo obrigatório para o
desenho dos currículos.
Considerando esses pressupostos, e em
articulação com as competências gerais da Educação Básica e com as competências
específicas da área de Ciências Humanas, o componente curricular de História
deve garantir aos alunos o desenvolvimento de competências específicas.
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