Na região conhecida como Areal, jovens índios tupinikim dançam ao lado de acampamento que estabeleceram em protesto pela retomada de suas terras tradicionais, em meio a plantação de eucaliptos da empresa Aracruz Celulose (Foto: Agência Brasil)
TERRAS
INDÍGENAS: COMO SÃO DEMARCADAS E POR QUE ESSA É UMA LUTA DE TODOS NÓS
Escrito por Rebeca A. A. de Campos Ferreira/Portal Politize!
Muito se fala sobre a luta dos povos
indígenas, sobre os conflitos e violências relacionados e até mesmo sobre o que
é “muita terra para pouco índio”. Mas o que é a demarcação das terras
indígenas? Como ela ocorre? Por que é importante reconhecer esses territórios?
Por que essa luta deve ser de toda a sociedade brasileira? Essas e outras
questões serão tratadas a seguir.
O QUE
SÃO TERRAS INDÍGENAS?
As terras indígenas são porções do
território brasileiro habitadas por povos indígenas. Essas estão diretamente
relacionadas à garantia da reprodução física, econômica, social e cultural
destes grupos, de acordo com seus costumes, tradições e usos.
O conceito de quais são as terras
tradicionalmente ocupadas pelos índios consta no artigo 231 da Constituição
Federal de 1988. Em seu primeiro parágrafo está estipulado que terras indígenas
são aquelas
“por eles [os índios] habitadas em caráter
permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à
preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as
necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e
tradições” (grifo nosso).
No que diz respeito às terras indígenas, é
importante saber que elas não são propriedade dos povos que nela habitam, mas
que constituem patrimônio da União. Tratam-se de bens públicos de uso especial,
o que significa que são inalienáveis, indisponíveis e não podem ser utilizadas
por outras pessoas que não sejam os próprios índios. Sendo assim, os indígenas
detêm sobre essas terras a posse permanente e o uso exclusivo das riquezas do
solo, dos rios e dos lagos existentes, ainda conforme o artigo 231.
POR
QUE É IMPORTANTE DEMARCAR AS TERRAS INDÍGENAS?
As terras são o suporte da cultura e do
modo de vida das 305 etnias indígenas. Elas são fundamentais para a reprodução
física e cultural desses grupos, para a manutenção de seus modos de vida
tradicionais, seus saberes e suas expressões culturais, as quais fazem parte do
patrimônio cultural brasileiro. Terra indígena demarcada significa a garantia
da diversidade cultural e étnica, assim como a proteção ao patrimônio histórico
e cultural brasileiro – o que caracteriza um dever da União e das Unidades
Federadas, conforme disposto no Art. 24, inciso VII da Constituição. A
demarcação das terras indígenas ainda garante a proteção do meio ambiente e da
biodiversidade, o que também é um direito constitucional prescrito pelo art.
225 da Constituição.
DIREITO
DOS ÍNDIOS, DEVER DO ESTADO
Ter seus territórios demarcados é um
direito que os povos indígenas conquistaram após muitos anos de lutas e
resistências. A Constituição expressa os direitos dos povos indígenas tanto em
capítulos específicos – no título VIII, “Da Ordem Social”, e no capítulo VIII,
“Dos Índios” –, quanto em outros dispositivos ao longo de seu texto.
Alguns desses direitos já existiam no
ordenamento jurídico nacional, mas não de forma a garantir os direitos
fundamentais dos indígenas. São exemplos desse caso os direitos à diferença, a
ser diferente da sociedade nacional hegemônica, de ter seus costumes e suas
tradições reconhecidos como legítimos e respeitados pelo Estado Nacional. Foi
somente com a Constituição de 1988 que ocorreram mudanças importantes na
política indigenista nacional, permitindo o abandono da chamada “perspectiva
assimilacionista”. Essa visão entendia que os índios estavam em meio a um
processo de perda de seus costumes e tradições. Assim, eles estavam fadados a
desaparecer ao serem integrados à sociedade nacional. Essa visão entendia os
índios como sendo uma categoria transitória, fadada ao desaparecimento, já que
eles deveriam perder seus costumes e tradições e ser integrados à sociedade
nacional. A expectativa de que tais povos “deixariam de ser índios” está até
mesmo prevista no Estatuto do Índio.
Além de abolir essa ideia, a Constituição
de 1988 também demonstrou avanço ao considerar que o direito dos povos
indígenas às terras constituem direitos originários. Ou seja, reconheceu-se que
esse direito é anterior à criação do próprio Estado, pois os índios foram os
primeiros ocupantes do Brasil.
Foi também após 1988 que a legislação
nacional passou a considerar a necessidade de um território indígena ter
tamanho suficiente para garantir os elementos necessários à reprodução não só
física de um povo, mas também cultural. Ainda foi estipulado que essa
demarcação deve ser da área tradicionalmente ocupada pela etnia em questão. São
vários os exemplos de reservas indígenas de territórios tradicionalmente
ocupados, podendo ser citado o caso da reserva Apucarana, em Londrina, ocupada
pela etnia Kaingang. Antes da Constituição de 1988 eram demarcadas áreas muito
pequenas e/ou em localidades distintas da área tradicional de ocupação do
grupo. Os reflexos de tal política permanecem na atualidade, principalmente nas
regiões Nordeste, Sudeste e Sul, e também no Mato Grosso do Sul, onde o que se
vê são situações de confinamento territorial e restrições diversas aos
indígenas. São justamente nessas regiões que estão localizados conflitos por
terras entre indígenas e não indígenas.
Portanto, vemos que a partir de 1988 foi
estabelecida uma nova relação entre governo, sociedade e povos originários,
pautada no respeito e reconhecimento jurídico do direito à diferença. Tal
direito, segundo o professor da USP Eduardo Bittar, representa o objetivo do
respeito das singularidades dentro de
sociedades modernas que tendem a produzir homogeneização e padronização. Nesse
contexto, a demarcação das terras indígenas figura como uma obrigação do Estado
brasileiro imposta pela Constituição Federal. Além desse documento, destaca-se
o Decreto 5051/04 e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho no
Brasil (OIT), que garantem aos povos indígenas a posse exclusiva de seus
territórios e o respeito às suas organizações sociais, costumes, línguas,
crenças e tradições, consolidando o Estado Democrático e Pluriétnico de
Direito.
AS
FORMAS DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DE TERRITÓRIOS INDÍGENAS
Existem quatro formas de garantir o
direito dos indígenas ao território. São elas:
Terras Indígenas Tradicionalmente
Ocupadas: tratadas no artigo 231 da Constituição, são as terras indígenas de
ocupação tradicional, de direito originário dos povos indígenas, cujo processo
de demarcação é feito com base no Decreto n.º 1775/96.
Reservas Indígenas: são terras doadas por
terceiros, adquiridas e/ou desapropriadas pela União e que se destinam à posse
permanente dos povos indígenas. Também pertencem ao patrimônio da União e não
correspondem às terras de ocupação tradicional da etnia em questão, tal como
ocorre na forma anterior.
Terras Dominiais: são adquiridas por
compra ou por doação e são de propriedade das comunidades indígenas. Esse é o
único caso em que as terras não são apenas de usufruto dos indígenas e
propriedade da União.
Interditadas: são áreas interditadas para
proteção dos povos indígenas em isolamento voluntário, com controle de entrada
e circulação de terceiros. A interdição da área pode ser realizada, ou não,
juntamente com o processo de demarcação disciplinado pelo Decreto n.º 1775/96.
Mas o
que são indígenas em isolamento voluntário?
São também conhecidos como índios
isolados, que não mantêm contato com a sociedade não indígena e nem com outros
indígenas. Considera-se o isolamento como voluntário pois é escolha desses
grupos não estabelecer contato com outras pessoas. Essa opção é assegurada pela
legislação e são proibidas quaisquer tentativas de contato com esses indígenas,
que atualmente somam cerca de 80 grupos conhecidos no Brasil, sobretudo na
região Amazônica.
COMO
SÃO DEMARCADAS AS TERRAS INDÍGENAS?
É de competência da Fundação Nacional do
Índio (FUNAI) promover a demarcação das terras indígenas, protegê-las e fazer
respeitar seus bens. Cabe a essa autarquia coordenar e executar a política
indigenista brasileira, as ações de regularização, monitoramento e fiscalização
das terras indígenas Tais funções têm como bases principais o artigo 231 da
Constituição de 1988 e o Estatuto do Índio (Lei 6.001/73).
A demarcação das terras indígenas é
realizada por meio de um procedimento administrativo, pautado em requisitos
legais e técnicos, seguindo as etapas explicadas adiante:
Verificação da demanda territorial: é o
início do processo. Verifica-se a demanda posta pelo povo indígena, o que é
feito por um antropólogo. Cabe a esse profissional elaborar a Qualificação da
Demanda indicando a área reivindicada, o contexto social, político e econômico.
Estudos de identificação e delimitação: a
FUNAI nomeia um Grupo Técnico (GT), que é coordenado por um antropólogo. Esse
GT realiza as pesquisas e elabora o Relatório Circunstanciado de Identificação
e Delimitação da Terra Indígena (RCID). Tal relatório é submetido à aprovação
do Presidente da FUNAI. Após aprovado, um resumo do documento é publicado no
Diário Oficial da União, no Diário Oficial do Estado onde se localiza a área e
na Prefeitura Municipal.
Contraditório Administrativo: essa etapa
garante o direito dos estados, municípios e de qualquer interessado na área a
ser demarcada de manifestar-se. Caso alguém tenha motivos para pedir uma
indenização ou para indicar erros no relatório, tais razões devem ser
apresentadas à FUNAI. O Ministro da Justiça é o responsável por analisar a
questão esse julgamento.
Delimitação do território: é hora da
declaração dos limites da terra indígena e da determinação de sua demarcação,
mediante uma portaria declaratória, feita pelo Ministro da Justiça.
Demarcação física do território e
aprovação: enquanto essa demarcação é feita pela FUNAI e consiste na fixação
dos limites físicos da terra indígena, a aprovação é realizada por meio de um
decreto.
Levantamento dos habitantes: trata-se do
levantamento das pessoas não indígenas que estejam na área que será demarcada.
Se essas pessoas forem consideradas ocupantes de boa-fé, elas serão indenizadas
e devem, obrigatoriamente, deixar o local. Se forem ocupações de má fé, por exemplo
as grilagens, não terão direito à indenização. Isso fica a cargo da FUNAI, em
conjunto com o INCRA.
Aprovação da demarcação: é feita pela
Presidência da República por meio decreto presidencial. Junto à ela vem a
retirada de ocupantes não-índios, com o pagamento das indenizações, pela FUNAI.
Além desse pagamento, é responsabilidade do INCRA realizar o reassentamento dos
ocupantes não-índios que se enquadrem no perfil da reforma agrária.
Registro das terras indígenas: é feito
pela FUNAI junto à Secretaria de Patrimônio da União (SPU), em até trinta dias
após a publicação do decreto de homologação.
Interdição da área: realizada pela FUNAI
apenas em casos de ocorrência de indígenas isolados. Vamos conhecer melhor
estes casos adiante.
QUANTAS
SÃO AS TERRAS INDÍGENAS?
Segundo a FUNAI, atualmente existem 732
territórios indígenas em diversas fases:
43 terras indígenas demarcadas;
72 terras declaradas;
15 terras indígenas homologadas;
435 terras regularizadas;
111 terras indígenas em estudo;
6 portarias de interdição;
34 reservas indígenas regularizadas; e
16 reservas indígenas encaminhadas.
Mas algumas Instituições e Organizações
Não Governamentais indicam outros números, porque consideram as “terras sem
índios”, ou seja, aquelas que nem começaram o processo de demarcação pela
FUNAI. Por exemplo, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) indica a
existência de 1296 terras indígenas no Brasil, sendo que 63,3% delas não
tiveram quaisquer providências administrativas tomadas pelos órgãos do Estado, permanecendo
casos de ‘índios sem terra’.
Portanto, vimos que o processo de
demarcação é um meio administrativo para limitar o território tradicionalmente
ocupado por uma ou mais etnias aborígenes. Com o dever de demarcar as terras
indígenas, o Estado Brasileiro busca resgatar uma dívida histórica com os
primeiros habitantes da nação, propiciando condições fundamentais para a
sobrevivência física e cultural desses povos e preservando a diversidade
cultural brasileira. Tudo isso em cumprimento ao que é determinado pelo artigo
231 da Constituição Federal.
Fonte: http://www.politize.com.br
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